segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Psicólogo

Ir ao psicólogo conversar sobre os problemas de desenvolvimento do seu filho é um penoso ritual de humilhação. Porque a premissa daquele encontro é que o psicólogo, depois de um minucioso escrutínio do seu comportamento como pai e do comportamento do seu filho, vai fazer intervenções. Vai apontar seus erros. A premissa daquela consulta é que você é uma falência como pai.

E se você acha que está, desde que seu filho nasceu, sendo honesta e dedicadamente a melhor mãe que você consegue ser? E se as dificuldades de desenvolvimento do seu filho não tiverem nada, nada mesmo, a ver com você? E se a programação genética dela for para ela falar só com cinco anos, seis anos?

Dá para não se afetar com isso?

Eu, pessoalmente, não acredito e nunca acreditei em psicólogos. Acho uma coisa de resultados no mínimo duvidosos. O simples fato de eu me sujeitar a frequentar estas sessões é uma demonstração do quanto eu sou capaz de abrir mão pela minha filha: abro mão, para começar, de minhas convicções e crenças.

E acho que ninguém escapa a um escrutínio tão minucioso. Desafio qualquer família - a melhor família do mundo, se essa entidade existir - a ir a um psicólogo com um problema qualquer que aflija seu filho. Você vai ser examinado com lupa, e com uma lupa impiedosa, que está ali para ver tudo pela lente do defeito. Fez muito carinho? É esse o problema. Fez pouco carinho? É esse o problema.

O autismo é o novo preto

A sensação que a gente tem é de que o autismo é o novo preto: combina com tudo. Parece que, hoje em dia, para qualquer dificuldade de desenvolvimento, autismo é o primeiro diagnóstico a se aventar. Saiu do cronograma estipulado pelos guias de pediatria, é autista. Até porque se criou, recentemente, a figura do "espectro do autismo", um espectro tão amplo do qual quase ninguém escapa. É, de fato, um espectro: um espectro a rondar a vida dos pais.

Foi a primeira hipótese que levantaram para o caso da Bebê. Ela tinha dois anos e nós estávamos preocupados, basicamente, com o fato de ela ainda não falar coisa nenhuma. A bebê fez uma consulta desastrosa com um neuropediatra. À época, morávamos no Paraguai. O neuropediatra nem se levantou da cadeira durante a "avaliação". Entramos no consultório e a Bebê ficou, tímida, se escondendo atrás de mim. Ele ficou sacudindo uma caixa de fósforos, fazendo ruído, e a chamando pelo nome : "Bebê. Bebê!" E ela se escondendo atrás de mim. Pronto, é autista, porque não fala, não olhou nos olhos do neuropediatra e não quis interagir com ele.

O detalhe extra é que em casa falamos português, e o neuropediatra falava espanhol. E com a gente ela também não fala, mas se comunica, interage e olha nos olhos o tempo inteiro.

Se ela fosse uma criança que falasse, a interpretação desse episódio seria : uma consulta normal. Quantas crianças não se escondem em um consultório? E será que a reação "normal" para uma criança de 2 anos seria entrar no consultório e ir brincando e se achegando ao médico que ela nunca viu?

Desde essa criteriosa avaliação, nossa vida virou um inferno.


Esperança rima com cobrança

Uma amiga minha tem um filho com Síndrome de Down. Um menininho super fofo e super querido, e ela é maravilhosa com ele: ama muito, leva para todo lugar, trata como qualquer mãe trata seu filho. Percebo que o que ela recebe do mundo externo - amigos, família, passantes - é admiração , mais do que merecida, pelo amor que dedica a seu filho.

Em certo sentido, às vezes eu penso que é mais fácil , ao menos por enquanto, a situação da minha amiga do que a minha. Porque ela recebe apoio e elogios de todo mundo. O que ela precisa é apenas fazer as pazes com o que o destino a reservou.

Eu seria capaz de fazer as pazes com o que o destino me reservou, fosse qual fosse a situação da Bebê. E de certa forma já fiz: eu amo muito a Bebê, gosto de estar com ela. Olhar para ela, que é linda, linda, é uma das minhas maiores alegrias. Eu poderia fazer as pazes com fato de que ela não viesse a ter autonomia e fosse precisar ser sempre cuidada, eternamente um filho; um filho eterno, para usar a expressão do livro do Cristóvão Tezza que eu ainda não consegui reunir coragem para ler. O que é difícil é ser constantemente analisada e criticada quando se está fazendo o melhor, se sacrificando para fazer o melhor. Mais difícil do que aceitar e amar o filho da gente do jeito que ele nos coube é ter de ouvir palpite o tempo inteiro, palpites em que sempre está implícito que aquela situação se deve a algo de errado que você está fazendo. Já recebi sugestões que vão desde "o que vocês precisam é ter logo outro filho" até "você devia levar sua filha a uma sessão de umbanda". Passando por "o que resolve é terapia behaviorista", "o que resolve é logopedia", "mas vocês têm de levá-la a uma análise freudiana", "já tentou o método son-rise?" Pais de filhos com problemas de desenvolvimento infantil não têm sua bravura elogiada. Não, eles são sempre culpados, estão sempre deixando de fazer algo. Pais de filhos com problema de desenvolvimento são abordados por estranhos bem-intencionados na rua. A sociedade já se educou para respeitar as diferenças no caso de um cadeirante, de um portador de síndrome de down. Mas não de uma criança que se desenvolve em um ritmo diferente da maioria.

Às vezes, confesso, evito certos ambientes para não ter de explicar a situação da Bebê, para não expô-la à curiosidade das pessoas. Eu, que já sou reclusa por natureza, estou ficando cada vez mais bicho-do-mato.

E me pergunto porque ninguém percebe que os problemas de desenvolvimento da Bebê são tão minha culpa como seria minha culpa se ela tivesse nascido sem uma perna.

Eu sei que se pode argumentar que a situação da Bebê é menos grave e tem uma perspectiva, uma esperança de chegar ao padrão que as pessoas definem como "normalidade". Isso é bom, eu sei. Mas essa esperança é uma faca de dois gumes. É uma esperança que rima com cobrança. Quando a psicóloga me diz que "o prognóstico da Bebê é muito bom, ela vai atingir um desenvolvimento normal, com o devido atendimento", não tenham dúvidas : a ênfase dessa frase é em "o devido atendimento".

Continuando

Sim, como eu disse aí do lado: não pode chamar de bebê. Não pode usar carrinho para se locomover - mesmo que na Europa você veja crianças de 6 anos perfeitamente normais andando de carrinho. Não pode consolar muito quando chora, tem que deixar chorar. Deu a chupeta? Não pode! Não pode fazer esses carinhos que as mães normais fazem. Como se carinho fizesse mal.

Quem tem filho com problema de desenvolvimento infantil vai convencido de que, de algum modo, a culpa é sua. De que você faz algo de errado. E isso vale para mim e vale para quem faz tudo diferente do que eu faço. Conheço várias famílias que estão ou estiveram às voltas com esse tipo de questão e a queixa do tratamento que os "especialistas" reservam aos pais é recorrente. Não importa que tipo de pai você seja, algo você deve estar fazendo de errado - e tome várias sessões caras de psicólogo para tentar "descobrir" o quê.

O pai de uma criança com problema de desenvolvimento infantil vai penalizado multiplamente. Além de ter de lidar com as questões do seu filho - e de ter de tentar, na medida do possível, fazer as pazes com elas - , você tem de lidar com a culpa e com os palpites. Porque todo mundo tem um palpite. Família, amigos, "especialistas", passantes. Aquela sua tia que só vê a criança uma vez por ano também acha que tem um palpite infalível, uma solução para o seu problema - que, claro, você ainda não deve ter visto por causa da sua imensa negligência.

O palpite, como esperado, está longe de ser a panacéia que o palpiteiro imagina. Não ajuda e maltrata ainda mais o pai que já está às voltas com tanto.

Eu acho que a Bebê vai se recuperar dessas dificuldades iniciais e ficar bem. Eu é que não sei se vou me recuperar. Disso, do massacre a que os pais de crianças com problema de desenvolvimento são submetidos. Se eu não descobrir um câncer quando já estiver tudo bem com a Bebê (coisa que aconteceu com um conhecido meu), as sequelas na minha vida e na minha cabeça vão ser tremendas. SÃO tremendas. Eu já não sou quem um dia eu fui. Alguma coisa dentro de mim se apagou. Se apagou quando deveria ter se acendido, com a vinda de um filho.